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Publicada em 02 de Maio de 2024 às 19:13

José Lutzenberger, artista plástico, foi cronista visual do Sul do Brasil

Ainda pouco conhecido do público, o artista plástico José Lutzenberger retratou em desenhos e aquarelas personagens e paisagens gaúchas do início do século XX

Ainda pouco conhecido do público, o artista plástico José Lutzenberger retratou em desenhos e aquarelas personagens e paisagens gaúchas do início do século XX

NILTON SANTOLIN/ACERVO CASA DA MEMÓRIA UNIMED/REPRODUÇÃO/JC
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Paulo César Teixeira, especial para o JC
Paulo César Teixeira, especial para o JC
Do alto do Morro Petrópolis, um homem montado a cavalo, acompanhado do cão fiel, avista o horizonte projetado sobre a silhueta de prédios da região central de Porto Alegre, em 1921. Na Serra Gaúcha, um imigrante solitário e pensativo contempla a paisagem bucólica da nova terra que o acolheu. Também na zona rural, homens e mulheres bem vestidos celebram o rito de um casamento, ao passo que - em outra imagem - um caixeiro viajante desperta após o pernoite na cama de pelego em um galpão de madeira. Para completar, espectadores atentos observam uma partida de futebol entre azuis e vermelhos, no que, provavelmente, tenha sido um Gre-Nal disputado no Estádio da Baixada, antigo campo do Grêmio.
Essas cenas estão retratadas em aquarelas, desenhos em nanquim e pinturas a óleo de José Lutzenberger na exposição Lutzenberger Universal, na Casa da Memória Unimed Federação/RS, em Porto Alegre. O título destaca o caráter universal da obra do alemão, que viveu durante 38 anos e meio na Europa e outros 31 no Brasil. No total, são 100 trabalhos resgatados de acervo familiar, arquivos da Associação Comercial de Porto Alegre, da Igreja São José e da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo da Ufrgs, além de coleções particulares.
Mais conhecido como arquiteto que ajudou a moldar a paisagem moderna da Capital gaúcha, no início do século passado, com edifícios como o Palácio do Comércio, o Asilo do Pão dos Pobres e a Igreja São José, além do conjunto residencial Vila Flores (hoje transformado em centro cultural), o homenageado não havia recebido ainda o justo reconhecimento como artista plástico. Em parte, a lacuna está sendo reparada com a mostra da Casa da Memória Unimed, integrada às comemorações dos 200 anos da imigração alemã no RS, que ficará em cartaz até 3 de julho deste ano. "Lutzenberger está entre os nomes-chave da cultura no Estado no século XX e precisa ser constantemente referido pela qualidade e o significado de sua produção intelectual, com legados originais e únicos, tanto na arquitetura quanto nas artes plásticas", afirma o curador José Francisco Alves.
Conforme ele, as artes plásticas representaram uma paixão na vida de Lutzenberger, da qual ele não abriu mão nem quando esteve presente nos campos de batalha da 1ª Guerra Mundial. Contudo, como a profissionalização sempre foi difícil para a sobrevivência material dos criadores, boa parte da habilidade e do talento do artista foi aproveitada na profissão correlata de arquiteto. Não por acaso, a exposição da Casa da Memória Unimed inclui desenhos de estudo arquitetônicos, que - tomados separadamente - constituem por si só verdadeiras obras de arte.
 

Arte nas trincheiras da guerra

Obras como a aquarela acima, registrando um dia movimentado na Baviera no início do século XX, fazem parte da primeira fase da produção de José Lutzenberger, quando ainda vivia em solo europeu

Obras como a aquarela acima, registrando um dia movimentado na Baviera no início do século XX, fazem parte da primeira fase da produção de José Lutzenberger, quando ainda vivia em solo europeu

NILTON SANTOLIN/ACERVO CASA DA MEMÓRIA UNIMED/REPRODUÇÃO/JC
José Lutzenberger nasceu em 13 de janeiro de 1882 em Altötting, pequena localidade do sul da Baviera, que à época fazia parte do Império Alemão. Como o pai era empresário do setor gráfico, desde cedo se familiarizou com tarefas de diagramação, tipografia e desenho. Porém, optou por formar-se engenheiro-arquiteto pela Universidade Técnica Real da Baviera, de Munique, aos 24 anos. No tempo de faculdade, fez ilustrações para livros e produziu aquarelas de paisagens, algumas das quais estão expostas na Casa da Memória Unimed.
Com a eclosão da 1ª Guerra Mundial, em 1914, Lutzenberger lutou em campos de batalha na França e na Bélgica, além de direcionar o talento de desenhista para projetar peças de artilharia para o exército alemão. Em períodos de trégua, registrou paisagens devastadas e cidades ocupadas, além do cotidiano dos soldados, em desenhos e aquarelas - destes, onze (que ainda não haviam sido expostos em público) estão em Lutzenberger Universal (outros 55 registros ficaram sob a guarda do Museu Militar de Munique). Outra novidade da exposição é o retrato de Lutzenberger em pintura a óleo com uniforme militar, feito pelo artista plástico alemão Hermann Klimsch, em 1915, descoberto no acervo da família. 

Vilarejo francês destruído no último ano da guerra (1918)

Vilarejo francês destruído no último ano da guerra (1918)

NILTON SANTOLIN/ACERVO CASA DA MEMÓRIA UNIMED/REPRODUÇÃO/JC
Passado o conflito bélico, em 1920, Lutzenberger respondeu a um anúncio publicado em um jornal alemão pela construtora Weise, Mennig & Cia, de Porto Alegre. A oferta era de um contrato temporário de cinco anos na capital do Rio Grande do Sul, como explicou a filha caçula Rosa Maria, artista plástica conhecida como Rose Lutzenberger, em reportagem do Jornal do Comércio de junho de 2020: "Os alemães estavam até passando fome, então, ele resolveu arriscar, com a cara e a coragem", disse Rose, que faleceu um ano depois da entrevista, aos 91 anos.

O alemão desembarcou em Santos (SP) no dia 5 de agosto de 1920, procedente de Amsterdã, após cruzar o Oceano Atlântico na segunda classe do vapor Gelsia. Em seguida, dirigiu-se ao sul do Brasil a bordo do navio Itapema, descendo em um trapiche do Guaíba, no dia 18 daquele mês. Nos primeiros dias em Porto Alegre, hospedou-se no Hotel Jung, na rua Voluntários da Pátria. Sobre esse período, comentou: "Meu latim e francês converteram-se em português, a arte da arquitetura virou prática de construção, enfim, do estômago ao cérebro tive de transmutar esse sujeito que eu era de tal maneira que, até hoje, com frequência, eu mesmo por instantes não me reconheço".

Jamais retornou para a Alemanha (viria a se naturalizar brasileiro em 25 de setembro de 1950). Em vez disso, fincou raízes no Estado ao se casar, em 1926, com Emma Kroeff, que conheceu durante a execução da obra da Catedral São Luiz Gonzaga, igreja-matriz de Novo Hamburgo. Com ela, além de Rose, teve outros dois filhos: José Antonio Lutzenberger (ecologista de renome internacional e um dos precursores do movimento ambientalista brasileiro) e Madalena.

Figuras populares em primeiro plano

Carreta de caixeiro viajante na Serra Gaúcha

Carreta de caixeiro viajante na Serra Gaúcha

NILTON SANTOLIN/ACERVO CASA DA MEMÓRIA UNIMED/REPRODUÇÃO/JC
Como artista plástico, Lutzenberger participou de pouquíssimas exposições durante a vida, todas de caráter coletivo. Em setembro de 1935, ele marcou dupla presença - nas seções de Arquitetura e Artes Plásticas - no Pavilhão Cultural da Exposição do Centenário Farroupilha, que aconteceu no prédio atual do Instituto de Educação Flores da Cunha, em Porto Alegre. Como arquiteto, apresentou 18 desenhos de projetos realizados e outros dois de prédios que não haviam saído do papel. Na área de artes visuais, sintomaticamente, preferiu se integrar à seção de amadores, com 13 obras - dois óleos, cinco aquarelas e seis nanquins. Além disso, expôs também no 1º Salão de Belas Artes do Rio Grande do Sul, em 1939, na condição de convidado, já que fazia parte do júri. "Nem dizia que era artista. Nós, os filhos, é que divulgamos a obra depois da morte dele", disse Rose. Entre as mostras promovidas postumamente, além da que está em cartaz na Casa da Memória Unimed, figuram as do Instituto Cultural Brasileiro Norte-Americano, em 1955, do IAB/Instituto de Belas Artes, em 1966, e do Margs, em 2001. 

Possível representação de um Gre-Nal na Baixada

Possível representação de um Gre-Nal na Baixada

NILTON SANTOLIN/ACERVO CASA DA MEMÓRIA UNIMED/REPRODUÇÃO/JC
"Em princípio, tem-se que ele não intencionava destacar-se profissionalmente por meio de exposições de arte, incluso para vendas", salienta Alves. Talvez porque fosse dotado de uma "modéstia à flor da pele", como definiu, certa feita, o arquiteto espanhol Fernando Corona. Mesmo assim, "são de Lutzenberger os mais interessantes trabalhos a fabularem sobre os combates e escaramuças entre farrapos e imperiais, na tentativa de visualizar o conflito em detalhes de situações de guerra", acentua Alves. O curador complementa: "A gente não sabe bem o que ele pensava, mas é certo que, depois que passou a dar aulas no Instituto de Belas Artes (nas disciplinas de Geometria Descritiva e Perspectiva e Sombras), recebeu o incentivo dos colegas para que expusesse o trabalho nas artes plásticas".

Entre 1940 e 1950, Lutzenberger (que morreu em 1951, aos 69 anos) publicou uma série de álbuns temáticos em pequeno formato, com páginas que se destacavam, contendo cartões e textos explicativos: Porto Alegre de Hontem, Lendas Brasileiras, O Caixeiro Viajante, O Colono no Rio Grande do Sul e O Gaúcho. Sobre a capital gaúcha, o destaque eram festas populares, a exemplo do carnaval, procissões religiosas e a enchente de 1941. Em suas obras, os protagonistas eram mendigos e lavadeiras à beira do Guaíba, além de figuras populares como Bataclan (propagandista de rua), sempre apresentados com uma fina ironia e de forma afetuosa. Já as imagens rurais, tanto da região da Campanha como da Serra, resultavam de observações feitas durante viagens pelo interior do Estado, como relatou Rose. "Era encantado com a paisagem do Rio Grande, totalmente diferente da que havia na Alemanha". Curiosamente, em ambos os casos, há personagens que aparecem repetidamente em diferentes desenhos e aquarelas, sem que sejam identificados, alguns com "feições caricaturais e em situações hilárias", como descreve Alves.

Arquitetura como obra de arte

José Lutzenberger destacou-se na arquitetura, como na proposta do Salão do Palácio do Comércio, em aquarela de 1938

José Lutzenberger destacou-se na arquitetura, como na proposta do Salão do Palácio do Comércio, em aquarela de 1938

NILTON SANTOLIN/ACERVO CASA DA MEMÓRIA UNIMED/REPRODUÇÃO/JC
A área dedicada à arquitetura na mostra da Casa da Memória Unimed contempla 30 desenhos e aquarelas - esboços iniciais, além de estudos intermediários e avançados, para a construção de prédios como o Palácio do Comércio e a Igreja São José. "Naquele tempo, a arquitetura era considerada uma forma de arte, como a pintura e a escultura. Embora tenham sido produzidos com a finalidade de mostrar às pessoas como ficariam as construções, podem ser consideradas obras de arte bem-acabadas", salienta José Francisco Alves, curador da exposição. Esses estudos remetem ao ambiente formativo do artista na Alemanha, época em que ele degustava revistas de arte e arquitetura como Moderne Bauformen, Deutsche Kunst und Dekoration e Jugend. Como se não bastasse, alguns representam retratos da época, uma vez que, além dos edifícios, mostram homens e mulheres elegantemente trajados que transitam nas calçadas.
 

Serviço

Aubigny-en-Artois, na França, ocupada pelo exército alemão (1915)

Aubigny-en-Artois, na França, ocupada pelo exército alemão (1915)

NILTON SANTOLIN/ACERVO CASA DA MEMÓRIA UNIMED/REPRODUÇÃO/JC
Exposição Lutzenberger Universal
- Local: Casa da Memória Unimed Federação/RS - Rua Santa Terezinha, 263
- Horário de visitação: 2ª a 6ª das 13h às 18h e, nos primeiros e terceiros sábados de cada mês, das 10h às 14h
- Em cartaz até 3 de julho de 2024
 

Paulo César Teixeira é jornalista com textos publicados em Isto É, Veja e Folha de S. Paulo. Escreveu os livros Esquina Maldita, Nega Lu – Uma dama de barba malfeita, Darcy Alves - Vida nas cordas do violão, e Rua da Margem - Histórias de Porto Alegre, baseado no portal do autor, www.ruadamargem.com.

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