Corrigir texto

Se você encontrou algum erro nesta notícia, por favor preencha o formulário abaixo e clique em enviar. Este formulário destina-se somente à comunicação de erros.

Justiça Penal

- Publicada em 12 de Fevereiro de 2018 às 10:50

Para juristas, princípio 'In dubio pro societate' enfraquece a democracia

Conceito não é mencionado na Constituição Federal ou no Código de Processo Penal brasileiro

Conceito não é mencionado na Constituição Federal ou no Código de Processo Penal brasileiro


/CNJ/DIVULGAÇÃO/JC
Na dúvida, beneficie-se o réu. Esse princípio, que coloca a presunção de inocência acima da necessidade de condenação, é um dos principais nortes do Direito, mas isso não significa que esteja acima de questionamentos. Com frequência razoável, advogados e juízes têm alegado que, em certas circunstâncias ou em determinadas etapas do processo penal, o anseio da coletividade por justiça deve prevalecer em situações de incerteza, garantindo um julgamento mais rígido ou ampliando o alcance da punição. Resumida no termo "in dubio pro societate", a ideia encontra acolhida em boa parte da comunidade jurídica, mas é alvo de fortes críticas entre vários doutrinadores, que o consideram uma ameaça ao próprio Direito e à democracia.
Na dúvida, beneficie-se o réu. Esse princípio, que coloca a presunção de inocência acima da necessidade de condenação, é um dos principais nortes do Direito, mas isso não significa que esteja acima de questionamentos. Com frequência razoável, advogados e juízes têm alegado que, em certas circunstâncias ou em determinadas etapas do processo penal, o anseio da coletividade por justiça deve prevalecer em situações de incerteza, garantindo um julgamento mais rígido ou ampliando o alcance da punição. Resumida no termo "in dubio pro societate", a ideia encontra acolhida em boa parte da comunidade jurídica, mas é alvo de fortes críticas entre vários doutrinadores, que o consideram uma ameaça ao próprio Direito e à democracia.
No ano passado, ao recomendar que a Câmara Federal recebesse a acusação contra o presidente Michel Temer (PMDB), o deputado Sergio Zveiter (PMDB-RJ) usou o "in dubio pro societate" em sua argumentação, afirmando que existiam "indícios mínimos" da prática de crime de obstrução da Justiça e que a apuração era de interesse da sociedade. Fora da esfera política, o mesmo argumento é utilizado em situações de dúvida, como a recente decisão que livrou os réus do incêndio da Boate Kiss, em Santa Maria, do júri popular.
A votação no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que apreciava recurso dos acusados para afastar o dolo eventual, terminou empatada em 4 a 4, o que levou os desembargadores a acolher a alternativa menos severa, que prevê julgamento em uma vara criminal do município. Segundo os advogados da associação de vítimas da tragédia, a escolha foi equivocada, já que o interesse coletivo teria prevalência na etapa de pronúncia dos réus e, no caso, garantia o júri popular.
Há menções até a um conceito paralelo, o "in dubio pro institutione", que valorizaria o interesse de uma instituição reconhecida como importante pela sociedade em situações de dúvida sobre a culpabilidade do réu. O atual secretário de Educação do estado de São Paulo, José Renato Nalini, mencionou o dito princípio em um caso, no ano passado, onde tentava impedir uma ex-diretora de escola de ser reincorporada após uma demissão considerada injustificada.
De acordo com o desembargador aposentado e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, a ideia do "in dubio pro societate" tem origem na reforma do Código Penal da Itália, proposta em 1925 por Alfredo Rocco, ministro da Justiça do ditador Benito Mussolini. O Código Rocco, como ficou conhecido, dava grande ênfase à manutenção da segurança e da ordem pública. Mesmo esse texto, porém, não delimitava o princípio de forma expressa. "O conceito pairava sobre o código, como uma consequência do caráter autoritário do texto. Nem mesmo eles tiveram coragem de escrever (um artigo de lei)", explica o jurista.
O Código de Processo Penal brasileiro, de 1941, teve inspiração no italiano, segundo Carvalho, apresentando a mesma tendência inquisitória e de controle social. Embora tenha sofrido modificações desde então, segue vigente - mas também não apresenta nenhuma previsão do "in dubio pro societate" em seus artigos. "Mais tarde, a Constituição (de 1988) consagra expressamente o princípio da presunção de inocência. No texto constitucional, só existe esse. Não há espaço algum para 'in dubio pro societate' na lei brasileira", acentua.
A utilização mais recente do conceito, argumenta Carvalho, tem base teórica no chamado direito penal do inimigo, preconizado pelo jurista alemão Günther Jakobs desde a metade dos anos 1980. Segundo essa corrente de pensamento, determinados infratores podem ser vistos, por seu comportamento ou pela gravidade de seus crimes, como inimigos da sociedade, cabendo ao Estado buscar sua neutralização. A partir dessa visão, esses criminosos perderiam, parcial ou totalmente, o status de cidadãos, vendo severamente diminuídas as suas garantias legais.
Uma visão que, na opinião de Carvalho, é contrária e nociva ao equilíbrio democrático. "Se dizemos que a democracia não é para todos, que uma parcela não tem o mesmo direito que as demais, então essa sociedade não é democrática. Hoje, os inimigos do País são os corruptos. Mas será que vale a pena, para punir essas pessoas, desmontar toda a estrutura de uma sociedade democrática?", questiona.

Privilegiar sociedade durante o processo penal é 'espantoso'

"Trata-se de um mito, não de um princípio. Isso precisa ficar bem claro", frisa Aury Lopes Júnior, doutor em Direito Processual Penal e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs). Segundo ele, o "in dubio pro societate" não tem base constitucional ou mesmo convencional, uma vez que não é acolhido pela Convenção Americana de Direitos Humanos. "Nunca foi consagrado em nenhum código ou texto legal. (Princípios como esse) são brocardos que vão sendo repetidos, a partir de uma visão autoritária do processo penal."
Em sua leitura, dizer que o interesse público deve prevalecer sobre os direitos do réu em determinados casos é fruto de uma visão "equivocada e reducionista" das relações entre os interesses público e privado. "Consolidar um princípio como esse é gerar um processo penal autoritário e policialesco, com sacrifício indevido de direitos e garantias, e de uma forma que se presta a toda sorte de injustiças", adverte.
Para o doutor em Direito Penal, "chega a ser espantoso" que se queira inverter o "in dubio pro reo" durante o processo penal, onde há um desequilíbrio entre a situação inerente ao acusado e o poder punitivo do Estado. "Recebe-se a acusação se estão presentes elementos de materialidade e autoria. Ou eles existem, ou não existem. Mesmo na fase de pronúncia, na qual muitas vezes se alega que o 'in dubio pro societate' deve prevalecer."
Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, da Uerj, identifica uma linha entre o apelo ao interesse coletivo e uma tendência securitária, que vê no Judiciário um papel de protetor da sociedade. "Toda época tem o juiz que merece", diz. "O que vemos hoje, por força de uma conjuntura de insegurança, é um enfraquecimento da ideologia democrática. No Brasil, há uma demanda para que a Justiça nos proteja, a qualquer custo, da criminalidade e da corrupção. O 'in dubio pro societate' se insere nesse cenário. Ao seguir essa direção, o Judiciário coloca os valores constitucionais em risco", adverte.
Aury Lopes Junior concorda. Segundo ele, a sensação de impunidade é gerada por um conjunto complexo de fatores, e a adoção de um processo penal consequencialista tende a cobrar um alto preço. "Vivemos isso hoje (no Brasil), onde se banaliza a prisão cautelar, se antecipa a prisão em segunda instância, há atropelo de garantias e o enfraquecimento da exigência probatória como requisito para condenação. O preço disso tudo é muito grave para a democracia."